"A vida não é como as águas do rio que passam sem descanso, nem como o sol que vai e volta sempre. A vida é uma chuva de verão, súbita e passageira, que se evapora ao cair."
Quando Isaura (Miriam Pires) lê para Afonso (Jofre Soares) a citação acima, o espectador já está completamente entregue a "Chuvas de Verão" (1978), obra-prima do diretor Carlos Diegues. Não utilizo a palavra "obra-prima" de forma leviana: aula de roteiro, direção, fotografia, e principalmente esforço interpretativo da própria Miriam, Jofre Soares, Rodolfo Arena e Loudes Mayer, transformaram -- passados trinta anos -- "Chuvas de Verão" em um dos melhores filmes do cinema brasileiro.
Ao revê-lo, muito impressiona como a arte fílmica nacional desaprendeu de lá pra cá, brutalizando o olhar atento e individualizado sobre o povo e a vida cotidiana em um arremedo de hipocrisia coletiva, superficialidade sociológica e terror bélico. Dói concluir que, apesar do salto no tempo, aquele subúrbio onírico de "Chuvas de Verão" ainda existe em algum lugar. Os personagens idem. Extinguiu-se, apenas, a vontade de retratá-los novamente.
Isso porque em "Chuvas de Verão" ninguém morre em nome do fetiche estético, a pobreza não busca expiações e a periferia não é tratada por um olhar infantilizante. No entanto, que bela crítica social é a figura de Afonso, um homem que dedicou toda vida à repartição, para em troca ser aposentado e receber como troféu uma caneta dourada. Obediente às normas, ciente dos seus deveres, Afonso jogou a vida fora. Está na hora de substituí-lo e devolvê-lo de pijama para uma casa pobre, onde como tantos esperará sozinho e resignado a morte.
Emulando um personagem qualquer do neo-realismo italiano, o homem velho sabe que viveu para nada. A partir dele fica claro que todos em volta habitam o mesmo dilema: a pianista fracassada, Dona Helô (Loudes Mayer), mãe de um inútil de 32 anos que nunca lhe dará netos; um ex-ponta esquerda do Bangu, que quase jogou no Vasco; o palhaço Guaraná (Rodolfo Arena), amigo de Afonso, que oculta um segredo terrível; e o x9 da polícia, Juracy (Paulo César Peréio), atuante na vizinhança como uma espécie de coringa.
É Juracy, conhecido como Pereba, quem dá as boas-vindas ao funcionário público depois da aposentadoria; é ele também que ajuda a filha de Seu Afonso, Dodora (Marieta Severo), a desmascarar a traição conjugal do marido; e será ele a apontar o dedo para o velho, que escondia em casa o bandido Lacraia (Luis Antonio), namorado da empregada Lurdinha (Cristina Aché). O drama do bandido Lacraia e o crime cometido pelo Palhaço Guaraná servem de informação ao público de que o roteiro não ignorava a violência urbana, tema já presente nos noticiários da época.
A vida futura de Afonso, depois da aposentadoria, resume-se a quatro dias. É cerceada imediatamente por funcionários da prefeitura, que derrubarão sua casa -- e o bairro tradicional -- para construírem um viaduto. O viaduto, metáfora da morte, da temporalidade, mas aceito de bom grado por Seu Afonso depois que concretiza a paixão reprimida por Isaura. Em um filme sobre a mediocridade, o sexo voluntarioso e libertário entre os dois velhos que bebem cerveja e escutam Francisco Alves não é chuva de verão: são águas de março, promessa de vida em resignados corações.
Cacá Diegues passou quase três anos escrevendo o roteiro, talvez para evitar que seu olhar de morador da zona sul -- alagoano de nascimento, foi criado em Botafogo -- contaminasse o espírito suburbano. De fato, chama atenção nos curtos 87 minutos de "Chuvas de Verão" a total ausência de estereótipos, e o despertar natural de uma empatia entre narrativa e público.
Sem qualquer julgamento por parte do diretor, a câmera apenas os observa. Somente Juracy, com suas frases de efeito ( "Eu tenho a cabeça boa, o que atrapalha é os pensamentos"), potencializado pelo tom excessivo e cativante de Paulo César Pereio, força a barra em um confronto. Os outros existem -- imperfeitos e observáveis.
A equipe passou semanas filmando em Marechal Hermes, zona norte do Rio, e em algumas outras locações da região, inclusive no Conjunto Habitacional Presidente Getúlio Vargas, Guadalupe, onde dez anos depois Cacá fez "Um Trem Para as Estrelas".
Moradia de Vina em "Um Trem Para as Estrelas" o popular Conjunto Deodoro aparece em "Chuvas de Verão" na cena da fuga de Lacraia, quando o motorista do táxi (Procópio Mariano) despeja um monólogo amargo, ilustrando em um desfile de impropérios a inutilidade da própria vida. O gordo Procópio, ator intuitivo e fabuloso, rouba a cena em entreato que deprime e exaspera.
"Chuvas de Verão" estaria no direito de ser, guardadas as ricas circunstâncias, uma experiência soturna, pesada. Pelo contrário, Cacá Diegues a conduz com tanta maestria e suavidade que terminamos o filme quase leves, felizes.
À verdade íntima de Seu Afonso, dos vizinhos, de cada um de nós, não importa a transitoriedade da vida e dos acontecimentos. Importa o que fazemos com eles, o almoço que preparamos para saciar nossa fome. Enquanto Dona Isaura após o sexo passa a usar vestidos claros, Carpe Diem, o aforismo do romano Horácio, cairia bem como resumo poético deste imperativo.
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