No início dos anos 80 o Brasil viveu uma curiosa transição. À gradual abertura política somou-se certa ânsia de prazer, de sexo, plenamente traduzida em obras literárias lançadas ou escritas na época. "A Fúria do Corpo", obra-prima de João Gilberto Noll, é o exemplo mais crasso. No cinema, filmes antes proibidos como "Império dos Sentidos" e "Garganta Profunda" chegavam às telas e lotavam salas com adultos sedentos por um novo estilo de entretenimento, que hoje nos parece tão banalizado e vulgar, mas que para eles era êxtase, ouro: a pornografia.
Muito pode-se discutir o sentido ideológico da pornografia. Transgressão de costumes, espetáculo misógino, tédio criativo. Particularmente, fico com este último. Diferente do erotismo, no momento em que a pornografia deixa de ser tabu em um espetáculo cinematográfico vira fim em si, escravizando narrativa, elenco e câmera a seus caprichos e à sua avassaladora vontade. Quando observamos um filme pornográfico, o que temos geralmente não é cinema, mas utilização de certos elementos do cinema para a divulgação de sexo explícito.
Exceções existem, e em profusão. Vejam Tinto Brass; algumas produções francesas dos anos 70 estreladas por Brigite Lahaie; o drama sadomasoquista "The Punishment of Anne" aka "The Image"; etc. Mas são pérolas que subvertem o pornô clássico, cerceando-o a uma vontade artística e criativa maior. No Brasil, tivemos "Oh! Rebuceteio" e as melhores produções da Boca. Sem esquecermos que foi exatamente a penetração (ops!) no explícito que destruiu a mais fértil indústria cinematográfica da América Latina.
Considerado marco inicial do gênero no país, "Coisas Eróticas" (1981), de Rafaelle Rossi, venceu a disputa por um golpe de sorte. Acentuando a velha rivalidade Rio x São Paulo, ao mesmo tempo era rodado no outro lado da Via Dutra, no Beco da Fome, aquele que tinha a pretensão de pioneirismo comercial. Acontece que "Viagem ao Céu da Boca" (1981) mostrou-se tão absurdo, tão repugnante, que teve bem mais dificuldades para desembaraçar-se da censura que seu oponente.
Obscura, negada, jogada para debaixo do tapete, a história desse filme terrível precisava ser resgatada. Uma pessoa próxima da produção, que aceitou me conceder depoimento, afirmou ser este "um filme que não deve ser visto. Inclusive dá azar. Todo mundo que participou daquilo na época, depois teve muitas dificuldades na vida". A fonte pede anonimato. Brincadeira, exagero -- ou não -- "Viagem ao Céu da Boca" merece o epíteto de uma das produções brasileiras mais malditas de todos os tempos.
Quando finalmente foi liberado, em meados de 1983, o rival "Coisas Eróticas" já era lenda. Apelou-se então para uma publicidade sensacionalista, dando conta de que fora "exibido nos Estados Unidos, Europa e Japão com mais sucesso que Calígula". Invencionice tosca, pois, lançado em algum outro lugar que não as salas especiais das grandes metrópoles, este primor da demência humana seria certamente proibido, banido, e seus distribuidores chamados às vias legais. Mesmo em um período de frenética tolerância artística como a virada dos anos 80, quando o home video pornô transformava a indústria sexual norte-americana e européia em um pátio de milagres. Assistam a "Hardcore Life" (1979), dirigido por Paul Schrader, e entenderão melhor o que estou falando.
Mas o que há de tão horrível em "Viagem ao Céu da Boca"? Nos créditos, roteiro de José Louzeiro, música de Zé Rodrix, direção do pornochanchadeiro Roberto Mauro. Percebe-se no plot uma certa tentativa de crítica social. Na fotografia, iluminação de atmosfera onírica. Stella Valadão, filha de Jece, faz a continuidade. Onde mora, então, o horror de "Viagem ao Céu da Boca"?
Nas longas sequências de tortura, sadismo e pedofilia. No óbvio oportunismo do diretor, Roberto Mauro, em usar argumento de um dos melhores roteiristas do país, para toscamente arrombar as portas do permissivo com uma das piores produções da história do cinema mundial. Ao tentar inaugurar o explícito, Mauro inaugurava antes certa espécie de extremismo, como se quisesse iniciar a liberação de costumes pelo limite final da aceitação humana.
Dito assim, "Viagem ao Céu da Boca" pode parecer bastante divertido. Mas na maior parte do tempo transparece tedioso, refém dos jogos sexuais. Nilo Barra (Eduardo Black) é um bandido que invade a residência de Mara (Bianca Blond), grã-fina cujo marido está de férias e que mantém na casa, como agregada, o travesti Paula (Ângela Leclery, a mesma boneca do filme de Carlo Mossy, "O Sequestro"), amante do marido.
Aqui, a história pára. São 45 minutos de sevícias e aflições horrendas sobre a mulher e o travesti. Quando o espectador já não aguenta mais, quando se propõe ele mesmo a sair do cinema e ligar para a polícia, eis que surge Eisinha (Eliane Gomes), menina de doze ou treze anos, calçando patins, que se oferece voluntariamente para amante do bandido.
Nesse meio tempo, Paula parece ter batido as botas. Volta como uma pomba-gira desvairada, a câmera faz piruetas, efeitos luminosos piscam freneticamente, e, através dos poderes da macumba, dá um nó no pênis do malfeitor. Em seguida, o bandido desperta na prisão e começa a ser torturado por policiais. Tudo não passou de sonho -- ser algoz, em vez de vítima -- entre uma sessão e outra de tortura.
Dos bastidores desta saga, poucas histórias restam. A melhor delas é que Bianca Blond e Eduardo Black não se sentiam atraídos um pelo outro, e as cenas quase não puderam ser feitas. Outra, que o travesti Ângela Leclery foi escolhido por suas capacidades ativas e passivas, em uma seleção de elenco que contou com a fina flor do submundo carioca.
Por uma dessas razões do destino, nos últimos anos me tornei vizinha de José Louzeiro, suposto roteirista do filme. Quando concedeu entrevista sobre sua carreira para o Estranho Encontro, em maio de 2006, nem eu nem Louzeiro recordamos sobre "Viagem ao Céu da Boca". Nunca é tarde. Interfono para meu querido vizinho e lhe faço uma visita:
- Louzeiro, me fale um pouco sobre "Viagem ao Céu da Boca", aquela direção do Roberto Mauro, que você escreveu o roteiro.
- Escrevi um conto sobre assuntos eróticos para uma revista, não me lembro o nome, chamado "Viagem ao Céu da Boca", uma história bem sutil. Jamais pensei que fosse virar filme. Entre erotismo e sexo escrachado, a diferença vai bem longe. Acontece que o diretor da revista foi abordado por esse cidadão, Roberto Mauro, que eu não conhecia. Conversamos e não pedi referências do moço. Quando é um dia, encontro a atriz, e ela chorando. "Imagine, eu vim do Paraná, queria entrar pro cinema, e estou chocada, estou decepcionada."
- Então o filme já havia sido feito e você nem escreveu o roteiro?
- Não fiz o roteiro, nem sei quem fez. Era pra ter sido baseado no meu conto. Aí eu fui ver, já estava na fase de edição e fiquei horrorizado. Sexo da forma mais violenta, triste. Eu que não sou de briga, briguei. Disse pra ele tirar o meu nome daquela imundície, ele jurou que ia tirar e não tirou. Deixei de falar com esse cara. Parece que antes de morrer ele queria falar comigo, mas eu não quis. Era mal pagador, não me pagou um tostão, e o pior é que ele queria fazer outro filme. Uma experiência que eu lamento muito que tenha acontecido comigo. Até quero publicar um livro de contos e incluir este, para verem como deveria ter sido. Roberto Mauro foi um cineasta de triste memória, uma vergonha para a classe.
Uma das razões de "Viagem ao Céu da Boca" ser pouquíssimo divulgado passa pelo bom senso: lançado em circuito comercial naquele distante 1983, assistido por qualquer um que portasse carteira com idade legalmente maior, hoje o filme é um crime ambulante. "Coisas Eróticas", o outro pioneiro, pode ser tão aborrecido, mas atravessou as décadas domesticado, quase ingênuo.
Esforcei-me na pesquisa, com a certeza de que uma compreensão plena somente revivendo ânimos de outrora, quando produtores e diretores espertos aproveitavam a liberdade conquistada e metiam o pé na porta, empurrando um tigre para a liturgia dos sete gatinhos. Paradoxo histórico, o futuro tornou esses esforços nauseabundos cada vez mais tabus. Cada vez mais malditos. Para estômagos de aço, pois nem os fortes sobrevivem.
FONTE: Andrea Ormondi
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